O mito do sortimento

Um dos maiores desafios no varejo, especialmente no varejo de mercadorias com ciclo de vida curto, como vestuário e calçados, é a gestão do sortimento. Com o crescente número de alternativas em diferentes dimensões de consumo, o varejo trabalha com a lógica de que quanto maior for o seu sortimento, melhor estará atendendo aos desejos dos seus clientes. Cristaliza-se assim o mito do sortimento. E em tempos de incerteza esse mito parece ganhar força, apesar da evidente necessidade de melhorar o retorno sobre o investimento feito em estoques.
Não se pode deixar de avaliar os impactos negativos que o excesso de sortimento pode trazer ao negócio. Alguns efeitos imediatos são claramente percebidos na operação, como o aumento da movimentação de mercadorias e o excedente de estoques que precisa ser liquidado ao final de cada ciclo de planejamento. Mas alguns efeitos silenciosos nem sempre são percebidos.
Desde os anos 1950, diversos estudos vêm tentando demonstrar que, embora o volume de vendas e a atratividade do sortimento cresçam com a ampliação do sortimento, esse crescimento ocorre somente até certo ponto. Após esse ponto, tanto o volume de vendas como a atratividade do sortimento começam a declinar, como em um gráfico em formato de “U” invertido.
Embora em estudo há mais de cinqüenta anos, apenas recentemente foram obtidas comprovações empíricas do impacto negativo do excesso de sortimento, em diferentes ramos de atuação do varejo. A lógica por trás desses estudos é que existe um limite no qual o consumidor passa a ter dificuldades para conseguir escolher o que deseja comprar, além do fato de que, ao exceder a capacidade física de exposição, as áreas de vendas e/ou estoques podem ficar carregadas demais, comprometendo o manuseio das mercadorias.
Em 1956 George Miller, o “pai” da memória de curto prazo, propôs que teríamos cerca de sete “slots” livre no nosso cérebro. Ou seja, tendo mais do que esse número de alternativas a escolher, nosso cérebro começaria um processo de decupagem para selecionar as sete alternativas que nos parecerem mais adequadas. Mais recentemente, o neurocientista Antônio Damásio sugeriu que esse número seria quatro, e não sete “slots”. O famoso teste da geléia, de Sheena Iyengar, em 2000, mostrou que é dez vezes mais eficaz escolher entre seis opções do que entre vinte e quatro. Seja como for, a quantidade de opções com as quais conseguimos lidar não é grande. Estudos mais recentes em PDV sugerem que o consumidor começa a ter dificuldades para escolher quando se depara com mais de 20 opções simultâneas. Esse número varia em função da categoria, mas não muito drasticamente. Afinal, a estrutura do cérebro humano é a mesma.
Então como definir o sortimento ótimo para cada categoria ofertada? A resposta não é simples e deveria estar vinculada ao posicionamento e proposta de valor do varejista. Muitas empresas partem do conceito de capacidade de exposição, ou seja, sua densidade no PDV. Outras técnicas podem ajudar, como estudos junto ao consumidor, observações, filmagens e análises estatísticas do desempenho de vendas por opção oferecida, por exemplo. Mesmo com esses recursos, a definição do sortimento tem sido frequentemente um processo heurístico, ou seja, de tentativa e erro. Mas se for para tentar, por que não tentar baseado na ciência?
Seja qual for o caminho adotado, a otimização e gestão do sortimento não é tarefa das mais simples, e raramente pode ser feita com sucesso sem o apoio de sistemas específicos, capazes de vincular o sortimento às verbas de compra e desempenho das categorias. Os sistemas são essenciais porque o sortimento se dá em cada ponto de venda, afinal, é ali que o consumidor visualiza as opções e decide pela sua compra. Logo, é absolutamente necessário que o sistema garanta o processo de alocação/abastecimento de mercadorias cumprindo o planejado no sortimento, pois fazer isso manualmente raramente funciona, mesmo em redes pequenas.
Compreendido e superado o mito do sortimento, planejar e gerir sua composição pode trazer ótimos resultados financeiros ao varejista, além de ser forte elemento para gerar vantagem competitiva frente aos concorrentes. Quer maior retorno sobre o investimento em estoques? Otimize inteligentemente o seu sortimento, seu consumidor agradece!
* Para maiores detalhes sobre impactos do sortimento, ver o trabalho de:
Eline de Vries-van Ketel (Universidade de Roterdã), em http://repub.eur.nl/resource/pub_7193/index.html … e o artigo de Sheena Iyengar em https://faculty.washington.edu/jdb/345/345%20Articles/Iyengar%20%26%20Lepper%20(2000).pdf
Temos ‘sete slots livres no cérebro’ …???
Qual a origem do gráfico em ‘U’ invertido? Alguma base de dados confiável?
Aqui, não é permitido, sabiamente, anexar gráficos ou quaisquer outros elementos comprobatórios da absoluta inadequação dos conceitos emitidos por cada autor…
Tenho inúmeros gráficos (verdadeiros e correspondentes a realidade) mostrando que o aumento das vendas é exponencial quando se o relaciona à quantidade de SKUs comercializados. É só pedir que terei o maior prazer em enviá-los
Nos últimos anos, o GPA reduziu consideravelmente a quantidade de SKUs comercializadas nos seus Supermercados de todos os formatos. Resultado? As ações da empresa despencaram de um preço por volta de R$ 100,00 para R$ 30,00…parece que os ‘slots’ de tolerância do mercado para quem procede errado são bem poucos…
O Grupo Leader fez a mesma coisa…e foi vendida, neste mês por R$ 1,00 (sim, hum Real)…
Mais SKUs vendem mais, sim. A despeito da tentativa de alguns de desqualificar as suas virtudes chamando (tudo que não compreendem) de ‘mito’…
Caro Ayala,
Obrigado pela sua atenta leitura do artigo e pelos comentários. Sem dúvida trata-se de um tema polêmico, pois, de certa forma, desafia o senso comum. Na essência, o mito ao qual o artigo se refere é com relação à tese que você defende: de que as vendas crescem indefinidamente com o aumento do sortimento, como se espaços físicos e recursos financeiros fossem infinitos, e a capacidade de escolha do cérebro humano não tivesse limitações. E, independentemente da experiência prática ou análise parcial de notícias, a ciência mostra que esse crescimento ocorre somente até certo ponto. E isso mesmo sem considerarmos modelos estatísticos de substituição de demanda.
O espaço desse portal para artigos desse tipo exige grande capacidade de síntese e didática, o que desafia bastante os autores. O gráfico apresentado é exatamente para ilustrar didaticamente algo que varia bastante conforme o segmento de varejo e categoria analisada. Por isso o rodapé do artigo sugere alguns papers para aprofundamento. Como especialista, também disponho de farto material analítico, dado que preparo um artigo científico sobre o assunto. Caso você deseje contribuir, de maneira positiva, será um prazer avaliar os seus materiais.
Sobre processo de decisão de compra, além do artigo sugerido da Sheena Iyengar, ela também tem um livro que sintetiza seu trabalho, o “The Art of Choosing”. Outra obra muito boa é o livro “The Paradox of Choice: Why More Is Less”, de Barry Schwartz, que traz ótimos insights a respeito.
E como me parece que o tópico “slots” despertou maior interesse, seguem alguns papers adicionais que aprofundam o tema, bases do artigo de McLeod, S. A. (2009), Short Term Memory (www.simplypsychology.org/short-term-memory.html)
Atkinson, R. C., & Shiffrin, R. M. (1971). The control processes of short-term memory. Institute for Mathematical Studies in the Social Sciences, Stanford University.
Baddeley, A.D., & Hitch, G. (1974). Working memory. In G.H. Bower (Ed.), The psychology of learning and motivation: Advances in research and theory (Vol. 8, pp. 47–89). New York: Academic Press.
Miller, G. (1956). The magical number seven, plus or minus two: Some limits on our capacity for processing information. The psychological review, 63, 81-97.
Peterson, L. R., & Peterson, M. J. (1959). Short-term retention of individual verbal items. Journal of experimental psychology, 58(3), 193-198.
Miller, G.A., & Nicely, P.E. An analysis of perceptual confusions among some English consonants. J. Acoust. Soc. Amer., 1955, 27, 338-352.
Grande abraço, sucesso, e continue conosco!
Ivan Correa